Esta reportagem foi publicada originalmente em 19 de abril de 2019.
"Ao longo da nossa conversa, como o senhor prefere ser chamado: Daniel ou Munduruku?", questionou a BBC News Brasil ao entrevistado. "Pode chamar de Daniel ou de Munduruku. Como preferir. Só não chama de Ãndio", disse, dando risada, o escritor.
Doutor em educação pela Universidade de São Paulo e pós-doutor em LinguÃstica pela Universidade Federal de São Carlos, Daniel Munduruku defende que a palavra "Ãndio" remonta a preconceitos - por exemplo, a ideia de que o indÃgena é selvagem e um ser do passado - além de "esconder toda a diversidade dos povos indÃgenas".
Por isso, "quando a gente comemora o Dia do Ãndio, estamos comemorando uma ficção", fala Munduruku, a respeito do 19 de abril. Reflexo disso são celebrações da data feitas por escolas, com uma "figura com duas pinturas no rosto e uma pena na cabeça, que mora em uma oca em forma de triângulo". "É uma ideia folclórica e preconceituosa."
"A palavra 'indÃgena' diz muito mais a nosso respeito do que a palavra 'Ãndio'. IndÃgena quer dizer originário, aquele que está ali antes dos outros", defende Munduruku, que pertence ao povo indÃgena de mesmo nome, hoje situado em regiões do Pará, Amazonas e Mato Grosso.
As palavras 'Ãndio' e 'indÃgena' não querem dizer a mesma coisa. E o termo 'Ãndio' está hoje ligado à 'preguiça, selvageria e atraso', diz Daniel
"Talvez o 19 de abril devesse ser chamado de Dia da Diversidade IndÃgena. As pessoas acham que é só uma questão de ser politicamente correto. Mas, para quem lida com palavra, sabe a força que a palavra tem", continua o escritor, autor de mais de 50 livros para crianças, jovens e educadores.
Leia abaixo a entrevista de Daniel Munduruku para a BBC News Brasil sobre o 19 de abril:
BBC News Brasil - Qual o problema da palavra "Ãndio"?
Daniel Munduruku - Do meu ponto de vista, a palavra Ãndio perdeu o seu sentido. É uma palavra que só desqualifica, remonta a preconceitos. É uma palavra genérica. Esse generalismo esconde toda a diversidade, riqueza, humanidade dos povos indÃgenas.
Quando a gente usa a palavra Ãndio, estamos nos reportando a duas ideias.
Uma é a ideia romântica, folclórica. É isso que se comemora no dia 19 de abril. Aquela figura do desenho animado, com duas pinturas no rosto e uma pena na cabeça, que mora em uma oca em forma de triângulo. Há a percepção de que essa é uma figura que precisamos preservar, um ser do passado. Mas os indÃgenas não são seres do passado, são do presente.
A segunda ideia é ideologizada. A palavra Ãndio está quase sempre ligada a preguiça, selvageria, atraso tecnológico, a uma visão de que o Ãndio tem muita terra e não sabe o que fazer com ela. A ideia de que o Ãndio acabou virando um empecilho para o desenvolvimento brasileiro.
BBC News Brasil - Então, deverÃamos abandonar a palavra "Ãndio" e usar "indÃgena"?
Munduruku - Uma palavra muda tudo? Sim, uma palavra muda muito. Nos meus vÃdeos e palestras, eu tenho sempre feito uma separação fundamental entre "Ãndio" e "indÃgena". As pessoas ainda pensam que Ãndio e indÃgena é a mesma coisa. Não é. O próprio dicionário diz isso.
A palavra indÃgena diz muito mais a nosso respeito do que a palavra Ãndio. A palavra Ãndio gera uma imagem distorcida. Já indÃgena quer dizer originário, aquele que está ali antes dos outros.
Ah, então eu nasci em São Paulo, eu sou indÃgena? Não, você é nativo. Para ser originário precisa ter um pertencimento a um povo ancestral. O antônimo (contrário) de indÃgena é alienÃgena, aquele que vem de fora. Então, eu uso indÃgena para reforçar o fato de que somos originários.
Além disso, eu não sou um indÃgena qualquer. Eu tenho um lugar de pertencimento: Munduruku. É importante reforçar a identidade dos povos.
BBC News Brasil - No Brasil, ainda é muito raro tratarmos os povos pelo nome. Por quê?
Munduruku - É muito mais fácil usar uma palavra genérica do que efetivamente dar aos povos indÃgenas o peso da sua identidade. Identificar os diferentes povos indÃgenas significa garantir a eles direitos e polÃticas especÃficas, não polÃticas genéricas.
BBC News Brasil - Você já disse que o Dia do Ãndio, comemorado hoje, 19 de abril, é "uma farsa".
Munduruku - Quando a gente comemora o Dia do Ãndio, estamos comemorando uma ficção, uma ideia folclórica e preconceituosa.
Por isso, quase sempre as comemorações desta data feitas nas escolas reproduzem o estereótipo. Mas, se nós continuamos tratando isso como ficção, vamos continuar deseducando nossas crianças.
'Comemorações feitas em escolas reproduzem um estereótipo', diz o acadêmico e escritor
Joilson César / Ag Haack
Talvez a data devesse ser chamada de Dia da Diversidade IndÃgena. As pessoas acham que é só uma questão de ser politicamente correto. Mas, para quem lida com palavra, sabe a força que a palavra tem. Tanto que apelido tem uma força destruidora - e "Ãndio" é, de certa forma, um apelido.
Um Dia da Diversidade IndÃgena teria um impacto semelhante ao Dia da Consciência Negra, que gerou uma mudança absolutamente significativa.
BBC News Brasil - Então, como deveria ser lembrado o dia 19 de abril?
Munduruku - A sugestão que eu sempre faço para escolas é que a gente possa deixar de usar o 19 de abril como uma data comemorativa. É uma data para a gente refletir. Deve gerar nas pessoas um desejo de conhecer, de entrar em contato com essa diversidade dos povos indÃgenas.
BBC News Brasil - Ainda há muito estereótipo no 19 de abril, ou já houve uma mudança?
Munduruku - Houve um avanço muito grande na sociedade. Mas, sem dúvida nenhuma, hoje ainda se reproduz muito desse imaginário do "Ãndio". E isso acontece por causa da escola. A escola é a última instituição a se atualizar.
O que acabou ajudando na atualização dos professores foi a lei 11.645, de 2008, que obrigou que a temática indÃgena saÃsse do 19 de abril e se tornasse parte de algumas disciplinas escolares. Isso criou condições para os professores se atualizarem, porque obrigou os governos a comprarem livros, oferecerem cursos?
BBC News Brasil - Como foi o seu processo de se reconhecer como indÃgena e Munduruku?
Munduruku - Eu nasci em 1964, ano do golpe. Em 1967, os militares criaram a Funai, que tinha entre suas prioridades nos tornar civilizados. Isso significava apagar nossa história, nossa identidade. É nesse momento que eu fui para escola. Eu sofri muito bullying, muita violência moral. E isso criou em mim uma espécie de ojeriza pela minha identidade Munduruku.
BBC News Brasil - Como era o bullying na escola?
Munduruku - O bullying é uma forma de criar na gente uma repulsa por aquilo que somos. Na escola, me chamavam de Ãndio de uma forma pejorativa. Dizendo que Ãndio é bicho, é selvagem. Não queriam fazer atividade comigo porque Ãndio não é inteligente.
Parte do ano escolar eu vivia na cidade - essa era uma das estratégias da Funai naquela época, tirar a gente do convÃvio com a comunidade, para não falar a lÃngua indÃgena, não conviver com rituais.
Já nas férias escolares, a gente voltava para a aldeia. Mas, algumas vezes, a gente nem queria mais ir para aldeia, com uma certa rejeição à nossa própria cultura. Quem abriu em mim outra perspectiva foi meu avô. Ele me fez aceitar minha identidade Munduruku e gostar de ser quem eu era.
BBC News Brasil - O mês de abril, por conta do Dia do Ãndio, costumava ser um momento em que o governo federal anunciava medidas ligadas aos povos indÃgenas - por exemplo, a demarcação de terras. Qual sua perspectiva para este ano?
Munduruku - O presidente Jair Bolsonaro já declarou que não entende absolutamente nada de povo indÃgena. A Força Nacional acaba de ser convocada para ir para BrasÃlia e coibir qualquer tipo de manifestação do movimento indÃgena nos próximos dias - que é quando vai ocorrer o Acampamento Terra Livre (assembleia de povos indÃgenas do Brasil, convocada para 24 a 26 de abril, na capital federal).
Em uma de suas transmissões ao vivo (no Facebook), o presidente disse que quer saber de onde vem o dinheiro para reunir 10 mil indÃgenas no Acampamento Terra Livre, disse que essa farra vai acabar. Mas o próprio movimento indÃgena já respondeu que o governo não dá nenhum tostão para mobilização indÃgena.
Exposição em São Paulo mostra em fotos dia a dia dos Ãndios ianomâmi
Reprodução/JN
Eu não quero ser profeta do caos. Mas minha perspectiva é que as coisas vão piorar para os povos indÃgenas nesse governo. Que o governo não vai fazer absolutamente nada favorável aos indÃgenas. Mas vai dizer que vai fazer, por exemplo, que vai abrir terra indÃgena para exploração mineral e que isso é positivo porque os indÃgenas querem ser iguais aos outros brasileiros. E uma parte da população vai acreditar nesse discurso vazio.
BBC News Brasil - Por quê?
Munduruku - Somos brasileiros como todos os outros e temos direito como todos os outros. Mas, no Brasil, quando se fala em direito, as pessoas quase sempre pensam em privilégios. Esse governo tem repetido que o Ãndio precisa ser igual a todos os brasileiros. Quando diz isso, está falando em acabar com os direitos que os indÃgenas possuem e que foram conquistados legitimamente na Constituição brasileira.
BBC News Brasil - Recentemente, em um debate no Congresso, a senadora Soraya Thronicke (PSL-MS) questionou por que os Ãndios "continuam miseráveis", se "têm em torno de 13% do território nacional, dinheiro destinado, polÃtica pública destinada". O que o senhor achou disso?
Munduruku - Uma coisa são as pessoas que realmente vivem na faixa da miséria. Outra coisa é chamar de miserável o indÃgena, que tem uma cultura milenar.
Quando a gente pensa que uma pessoa é miserável porque ela não é como a gente, porque ela não frequenta shopping center, a gente está sendo não apenas preconceituoso, mas racista. Essa senadora está julgando as culturas indÃgenas a partir dos parâmetros de riqueza que ela tem. Portanto, nem mereceria ser senadora.
BBC News Brasil - Qual o papel da literatura na mudança da visão do indÃgena pela sociedade?
Munduruku - A literatura é um instrumento superinteressante de construção de lugares de fala. Tem esse componente muito positivo de alimentar nas pessoas outros olhares, outras facetas da existência.
A literatura que eu faço é comprometida, minha forma de ser militante no movimento indÃgena. Eu tento usar a literatura para poder falar das nossas culturas. A literatura é fundamental para a gente ir desconstruindo esses estereótipos sobre os povos indÃgenas e ir construindo uma percepção diferente.